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Da Casa dos Contos ao Tribunal de Contas em movimento

Por Edilson Silva

Recentemente o Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina sediou a 1ª Reunião de Diretoria da Atricon para o biênio 2024/2025. Neste evento, tivemos a oportunidade de reencontrar não apenas amigos de longa data, mas também colegas dedicados ao fortalecimento e à eficaz atuação dos tribunais de contas em nosso país. Confesso que o encontro foi extremamente produtivo e, embora muito possa ser dito sobre os temas debatidos, hoje permito-me compartilhar uma breve reflexão inspirada pelas paredes daquela Corte de Contas.

O Tribunal de Contas de Santa Catarina narra sua própria história com uma riqueza e sensibilidade que toca profundamente qualquer transeunte que percorre seus ambientes e corredores. Rui Barbosa e Anita Garibaldi estão ali; fotos e documentos relacionados à Proclamação da República são exigidos lado a dado, convidando à reflexão sobre o passado. As “Terras de Sant’Anna e as Capitanias Hereditárias” também recebem destaque; a origem e a trajetória do Tribunal, ao longo de 65 anos, foram meticulosamente documentadas em 2021 e lá estão, à mostra. No entretanto, uma moldura e uma obra de arte em particular capturaram minha atenção, referindo-se à “Casa dos Contos”. Esta peça não apenas evoca as origens dos tribunais de contas no Brasil, mas também nos convida a refletir sobre seu futuro. Afinal, esse futuro será a projeção de tudo o que é realizado no presente, no agora.

E o que foi a Casa dos Contos?

Em brevíssima síntese, a Casa dos Contos foi uma instituição financeira criada no Brasil durante o período colonial, com o principal objetivo de controlar a arrecadação e a administração dos tributos relacionados à explicação do ouro. Desempenhava a fiscalização do cumprimento das obrigações fiscais dos mineradores e tornou-se um símbolo do controle e da fiscalização estatal sobre a economia, refletindo, de certa forma, os primórdios do que viriam a ser os modernos tribunais de contas.

Permitindo-se a liberdade poética que este texto convoca, revela-se ao leitor as maravilhas outrora descobertas ali:

 “A história do controle de gastos públicos no Brasil é bem mais antiga do que parece. Embora o Tribunal de Contas brasileiro tenha sido criado em 1890, o controle de gastos teve suas origens em Portugal. Para que se possa entender esse processo, temos que remontar ao princípio dos registros contáveis na Corte Portuguesa, iniciado por volta do século XIV com a criação da Casa dos Contos.

Nesse período, o modelo de escrituração utilizado era bastante rudimentar. O lançamento de receitas e despesas realizava-se por meio do sistema de partidas simples, ao passo que as partidas dobradas já estavam em uso.

Ao longo dos tempos, diversas foram as ações destinadas ao melhoramento do controle de despesas, que contou inclusive com intercâmbio e observações da experiência de outros países da Europa.

Da Casa dos Contos ao Erário Régio e Conselho Real da Fazenda, as ações do controle de gastos, por séculos, estiveram presentes nos contextos lusitano e brasileiro.

A medida que o poder absoluto do rei perde força, frente a uma mudança de atitude europeia influenciada pelo Iluminismo, cresce no povo o desejo por uma maior participação nas decisões referentes ao destino dos gastos de recursos nacionais. Imersos nessa conjuntura, surgem os Tribunais de Contas, uma das mais poderosas ferramentas de cidadania já propostas. ”
(Anselmo Loschi Bessa – curador)

A reflexão justifica-se por entender que a história dos tribunais de contas no Brasil é uma narrativa de evolução, refletindo as mudanças sociais, políticas e econômicas do país. Desde a criação da Casa dos Contos, no século XVII, até os dias atuais, essas instituições têm desempenhado um papel fundamental no controle externo e na fiscalização dos recursos públicos, adaptando-se às novas exigências e tendências da sociedade brasileira.

Inicialmente, a função dos tribunais de contas estava estritamente vinculada à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Estado e das entidades da administração direta e indireta. Com o objetivo de assegurar a legalidade, a legitimidade e a economicidade dos atos de gestão. Contudo, ao longo do tempo, sobretudo após a promulgação da Constituição de 1988 e subsequente à alteração da Lei de Introdução às normas Direito Brasileiro, observou-se uma significativa mudança de paradigma na atuação desses órgãos.

A Constituição de 1988 marcou uma evolução significativa no papel dos tribunais de contas, conferindo-lhes maior autonomia e expandindo suas competências, consolidando-os como órgãos essenciais de controle externo. Essa nova definição não se limitou à fiscalização, mas estendeu-se ao apoio ao Legislativa na proteção do patrimônio público. Este marco legal simbolizou uma mudança paradigmática, promovendo a transição de um modelo tradicional de fiscalização “a posteriori” para uma abordagem mais preventiva e proativa.

Nesse contexto, os tribunais de contas evoluíram uma postura mais ativa, buscando não penas identificar e corrigir falhas e irregularidades, mas também incentivar a eficiência, eficácia e efetividade na administração pública. Essa mudança se manifestou na realização de auditorias operacionais destinadas a avaliar a implementação das políticas públicas, suas metodologias e resultados, transcendendo a tradicional análise da legalidade dos atos administrativos.

A transformação dos tribunais de contas reflete uma mudança substancial, na qual essas entidades transcendem sua função precípua de fiscalização, sem, contudo, abdicar dela, para assumir um papel multifacetado e crucial na promoção da eficiência, eficácia e transparência na administração dos recursos públicos. Esta nova faceta não apenas reafirma sua posição como guardiões da legalidade e fiscalizadores dos gastos públicos, mas também os eleva, permitindo que contribuam significativamente para a melhoria das políticas e da gestão pública.

Este novo papel ficou muito evidenciado no programa de fiscalização relacionado à gestão da pandemia de Covid-19, um momento que destacou a capacidade de adaptação e a importância crescente dos tribunais de contas. Durante esse período crítico, houve uma mobilização notável de profissionais do Tribunal de Contas da União e dos tribunais das unidades da federação, que se uniram num esforço colaborativo para monitorar as ações governamentais. Esse esforço conjunto concentrou-se nas contratações públicas em todos os níveis de governo (municipal, estadual e federal), com o objetivo de assegurar a correta aplicação dos recursos em um momento de urgência sanitária e econômica.

Um outro exemplo marcante foi o Programa de Fiscalização em Saúde, uma iniciativa conjunta entre os Tribunais de Contas da União e os tribunais de contas estaduais e municipais. Este programa transcendeu a mera verificação da legalidade dos atos administrativos, dedicando-se também a garantir a concretização do direito constitucional à saúde. Assim expandiu a amplitude da fiscalização para incluir a avaliação da eficácia das políticas públicas em vigor.

Essa experiência demonstra que nossa missão vai além da análise de conformidade formal dos atos administrativos – uma função que continuamos a exercer. Ela se estende para assegurar a materialização dos direitos claramente previstos na Constituição Federal. Isso é alcançado por meio de uma avalição criteriosa sobre a implementação das políticas públicas, garantindo sua total aderência aos princípios e metas estabelecidos no texto constitucional.

Para além disso a alteração da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) traz consigo inovações significativas que convidam os tribunais de contas a repensar suas práticas e abordagens. Este movimento legislativo sugere uma reflexão profunda sobre a incorporação dos princípios do consensualismo e do consequencialismo nas atividades desses órgãos de controle. O desafio central reside em adotar esses princípios de maneira que não apenas complementem e enriqueçam sua missão constitucional de fiscalização e controle, mas que também o façam sem comprometer os princípios fundamentais de legalidade e moralidade, que são pilares da administração pública.

A introdução do consensualismo nas práticas dos tribunais de contas aponta para uma preferência por soluções negociadas e acordos, em detrimento de medidas punitivas imediatas. Essa abordagem busca promover uma maior eficiência na resolução de conflitos e na implementação de políticas públicas, alinhando-se com uma visão mais moderna e dinâmica da administração pública.

Por outro lado, o consequencialismo exige que as decisões tomadas pelos tribunais de contas levem em consideração as consequências práticas de suas ações. Isso implica uma análise cuidadosa dos impactos de suas decisões, não apenas do ponto de vista legal, mas também em termos de eficácia administrativa e bem-estar social. A aplicação desse princípio pode resultar em uma fiscalização mais orientada para resultados, contribuindo para a promoção de uma gestão pública mais responsiva e alinhada com as necessidades da sociedade.

A incorporação desses princípios não é uma tarefa simples. Ela exige dos tribunais de contas uma revisão criteriosa de suas metodologias e uma disposição para adaptar suas práticas de modo a incorporar essas novas perspectivas. Além disso, é essencial que essa transição seja realizada de maneira a preservar os valores de legalidade e moralidade, garantindo que a busca por eficiência e consenso não comprometa os padrões éticos e legais que devem orientar a administração pública. No entanto, essa mudança também oferece uma oportunidade para tornar a atuação dos tribunais de contas mais efetiva e alinhada com as necessidades contemporâneas da sociedade brasileira.

E voltando ao começo de tudo, à Casa dos Contos para rememorar os dizeres histórico que a referencia, “o anseio do povo por uma das mais poderosas ferramentas da cidadania já proposta”, reflete-se: o que lerão e ouvirão os que vierem depois de nós, sobre o tribunal de contas que conduzimos no tempo presente?

Edilson Silva – Conselheiro do TCE-RO e Presidente da Atricon.

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