Pular para o conteúdo
Notícias

Presidente da Atricon diz que decisão compromete o propósito da Lei da Ficha Limpa

Em artigo publicado nesta sexta-feira (26) no jornal O Estadão, de abrangência nacional, o presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), conselheiro Valdecir Pascoal (TCE-PE), em coautoria com o jurista Márlon Reis, aborda a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e seus reflexos para a Lei da Ficha Limpa, no que tange especialmente à “accountability” (dever de prestar contas), atributo essencial à boa governança na administração pública.

Pascoal e Reis enfatizam que a decisão do Supremo “compromete, em grande medida, a efetividade do controle e o propósito fundamental da Lei da Ficha Limpa, que é o de melhorar a qualidade da gestão e da democracia”.

O Tribunal de Contas de Rondônia (TCE-RO) disponibiliza abaixo a íntegra do artigo.

A ficha que não pode cair

* Márlon Reis e Valdecir Pascoal

O termo “accountability”, atributo da boa governança no setor público, está associado à qualidade da democracia, da gestão, e da transparência, bem como à efetividade dos controles institucionais e social, que, em síntese, buscam prevenir irregularidades e também assegurar a responsabilização dos agentes que se desviaram da rota republicana.

A recente decisão do STF transferindo dos Tribunais de Contas às Câmaras de Vereadores a competência para julgar as contas de gestão de prefeitos é um passo atrás em nossa “accountability”, pois compromete, em grande medida, a efetividade do controle e o propósito fundamental da Lei da Ficha Limpa, que é o de melhorar a qualidade da gestão e da democracia.

E esse retrocesso ocorre justamente quando o cidadão clama por mais ética na política, pelo fim da impunidade e por uma administração que garanta a excelência na prestação dos serviços públicos, com destaque para a educação, a saúde e a segurança.

A Lei da Ficha Limpa, uma das poucas legislações de iniciativa popular, foi aprovada exatamente para concretizar esses desejos da sociedade. Para dirimir dúvidas, o diploma (alínea “g” do inciso I do artigo 1º) deixou claro que se o detentor de mandato eletivo (presidente, governador ou prefeito) praticar atos típicos de gestão (assinar empenhos, homologar licitações, firmar contratos e determinar pagamentos, etc.), ele será tratado de forma idêntica à dos demais ordenadores de despesa, ficando, como tal, sujeito ao julgamento pelos Tribunais de Contas, nos termos dos artigos 71, inciso II, e 75 da Constituição.

Neste caso, o julgamento do Tribunal não poderá sofrer interferência do Legislativo, como ocorre com qualquer agente que administre recursos públicos, sujeitando-se o mandatário, ainda, nos termos dos artigos 71, VIII, §3º, e 75 da Lei Maior, à aplicação de sanções e à imputação de débito, com eficácia de título executivo.

Assim, o prefeito que decidir ordenar despesas é submetido a dois regimes de prestação e julgamento de contas. Além das contas de gestão, julgadas privativamente pelos Tribunais de Contas, como vimos, ele é responsável pelas chamadas contas de governo, cujo conteúdo, bem mais limitado, abrange os balanços e demonstrativos orçamentários e financeiros, a observância dos limites constitucionais em educação e saúde e os limites de pessoal e endividamento da LRF. É neste último caso (contas de governo) que a Câmara é competente para julgar, mediante parecer prévio do Tribunal de Contas, conforme prescreve a Constituição, nos artigos 31, 71, I, e 75.

Vale dizer que o próprio STF, ao analisar a Lei da Ficha Limpa em 2012, por meio das Ações Declaratórias 29 e 30, de iniciativa da OAB, considerou constitucional todo o conteúdo da referida “alínea g”. Foi justamente essa decisão do STF que levou o TSE a mudar de posição, passando a considerar a rejeição das contas de gestão do prefeito pelos Tribunais de Contas como um dos critérios para gerar a inelegibilidade dos candidatos.

Para se ter uma ideia da relevância desta hipótese de inelegibilidade, a impugnações decorrentes atingiram o expressivo percentual de 66% de todas aquelas ocorridas nas eleições municipais de 2012. Ademais, ainda que seja correto afirmar que todas as leis podem ser aprimoradas, em relação à da Ficha Limpa não se aponta nenhum caso em que a inelegibilidade declarada pela Justiça Eleitoral tenha caracterizado um absurdo ou injustiça.

E quais as consequências dessa nova inflexão já para as eleições de 2016? A primeira é que, conforme a Atricon (Associação dos Membros dos Tribunais de Contas), mais de cinco mil prefeitos e ex-prefeitos no país, que tiveram suas contas de gestão rejeitadas pelos Tribunais nos últimos oito anos, ficarão imunes ao benfazejo filtro da inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa. Além disso, o mesmo levantamento aponta que mais de 4 bilhões de reais em multas e débitos imputados a eles correm sério risco de não retornarem aos cofres públicos.

A segunda é que as contas de gestão, antes julgadas, tecnicamente e com a observância do devido processo legal, pelos Tribunais de Contas, órgãos integrados por servidores de reconhecida qualidade e compostos por membros dotados de direitos e garantias da magistratura — com a devida interveniência do Ministério Público de Contas —, agora passarão a sê-lo pelas Câmaras de Vereadores, que, histórica e sabidamente, por razões eminentemente políticas ou estruturais, negligenciam do exercício de sua função fiscalizadora.

A propósito da conveniência da participação dos Tribunais de Contas neste processo, vale ressaltar a confiança de que desfrutam junto à sociedade, conforme os dados da recente pesquisa CNI/Ibope, quando cerca de 90% dos entrevistados que conhecem sua atuação reconheceram a importância desses órgãos no combate à corrupção e à ineficiência.

Decerto que o direito e sua interpretação não são estáticos e as decisões da Suprema Corte merecem o devido respeito, ainda que delas se possa discordar, como o fazemos neste caso concreto. Nada obstante, enquanto houver possibilidade de evolução jurisprudencial, envidaremos todos os esforços para sensibilizar o STF a restaurar a plenitude do entendimento, esposado em 2012, sobre a Lei da Ficha Limpa.

Entrementes, para se evitar a manifesta insegurança jurídica, cabe esclarecer todas as possíveis implicações da tese aprovada sobre as demais competências dos Tribunais de Contas, a exemplo da aplicação de multas, sustação de atos ilegais, determinação de ressarcimentos e julgamento de convênios, em relação a atos de gestão de Prefeitos. A propósito, não podemos esquecer que foi o mesmo STF quem fortaleceu, por meio de evolução jurisprudencial, os Tribunais de Contas em relação à competência para julgar contas de gestores de empresas estatais, como a Petrobrás.

Esperançar por uma interpretação que confira máxima efetividade aos preceitos da Carta Magna é preciso, em nome da boa governança pública, da “accountability” e da democracia.

  • Márlon Reis – Advogado, Doutor em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas pela Universidade de Zaragoza (Espanha) e cofundador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE);
  • Valdecir Pascoal – Presidente da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas (Atricon) e Conselheiro do TCE-PE.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Botão Voltar ao topo
Pular para o conteúdo